domingo, 16 de janeiro de 2011

Cem anos de solidão

No momento estou terminando de ler Cem Anos de Solidão (Editora Record), de Gabriel García Márquez, e encontrei um trecho muito interessante que fala sobre rotina (nas páginas 283 e 284).
"A verdade é que Úrsula se negava a envelhecer mesmo depois de ter perdido a conta de sua idade (...) Ninguém soube ao certo quando começou a perder a vista. Mesmo nos seus últimos anos, quando já não conseguia se levantar da cama, parecia simplesmente que estava vencida pela decrepitude, e ninguém descobriu que estava cega. (...) Não disse a ninguém, pois teria sido reconhecer em público sua inutilidade. Empenhou-se num silencioso aprendizado das distâncias das coisas e das vozes das pessoas, para continuar vendo com a memória quando as sombras da catarata já não permitissem ver com os olhos. Mais tarde haveria de descobrir o auxílio imprevisto dos cheiros, que se definiram nas trevas com uma força muito mais convincente do que os volumes e a cor e a salvaram definitivamente da vergonha e da renúncia. (...) Conheceu com tanta segurança o lugar onde ficava cada coisa, que ela mesma às vezes se esquecia que estava cega. Em certa ocasião, Fernanda alvoroçou a casa porque tinha perdido sua aliança de casamento e Úrsula encontrou-a numa estante do quarto das crianças. Era simples: enquantos os outros andavam descuidadamente por todos os lados, ela os vigiava com seus quatro sentidos para que nunca a apanhassem de surpresa, e depois de algum tempo descobriu que cada membro da família repetia todos os dias, sem perceber, os mesmos trajetos, os mesmos atos, e que quase repetiam as mesmas palavras à mesma hora. Só quando saíam dessa meticulosa rotina corriam o risco de perder alguma coisa. Portanto, quando ouviu Fernanda consternada porque tinha perdido a aliança, Úrsula recordou que a única coisa diferente que havia feito aquele dia tinha sido botar as esteiras das crianças no sol, porque Meme tinha descoberto um percevejo na noite anterior. Como as crianças assistiram à limpeza, Úrsula pensou que Fernanda havia posto a aliança no único lugar onde elas não poderiam alcançar: a estante. Fernanda, por sua vez, procurou-a unicamente nos trajetos de seu itinerário cotidiano, sem saber que a busca das coisas perdidas fica prejudicada pelos hábitos rotineiros, e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las".
Gabriel García Márquez ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1982. Como todo bom escritor, ele transforma nosso olhar e nos ajuda a lidar melhor com as cegueiras do nosso rotineiro cotidiano. 

Um comentário:

  1. Tom, eu amei isso... faz muito tempo que li Cem Anos de Solidão e quando leio Gabriel García Marques sempre me surpreendo com a comtemporaneidade dos seus livros.

    Feliz 2011 e vida longa ao Drops Cultural!

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