domingo, 22 de janeiro de 2012

Freud e a terceira cultura, por Daniel Piza

Comento de vez em quando a proposta da “terceira cultura”, demonstrada em sites como Edge  www.edge.org), que é a de reaproximar a ciência e os conhecimentos propiciados pelas chamadas humanidades (filosofia, sociologia, psicologia, antropologia) e pelas artes e seus críticos. O termo vem do lendário debate entre C.P. Snow e F.R. Leavis nos anos 50, As Duas Culturas, em que foram traçadas as fronteiras entre as duas áreas: a ciência seria cumulativa e criaria melhoras concretas na realidade das pessoas (como a anestesia ou mesmo a maior expectativa de vida atual), as humanidades e as artes não teriam a mesma noção de “progresso” (não se pode dizer que Michelangelo foi inferior ou sabia menos sobre a natureza humana do que Brancusi, digamos) e seriam mais especulativas.

A “terceira cultura” vem gerando ou reforçando diversos produtos, sobretudo livros de neurologistas e biólogos que tentam analisar o comportamento humano do ponto de vista evolucionista (com as descobertas feitas desde Darwin até o Projeto Genoma), nomes como Oliver Sacks, Richard Dawkins, Steven Pinker e António Damásio (que dedicou, entre outros, um livro ao pensamento de Spinoza). Até expressões como “instinto de arte” (“art instinct”) foram criadas para tentar explicar fisiologicamente nossa percepção do que é belo e expressivo. Estudos da linguagem também passaram a ser reivindicados cada vez mais por quem tem familiaridade com escaneamentos cerebrais do que com teorias semióticas e congêneres. É como se o empirismo pudesse tudo.

Méritos e deméritos à parte, o fato é que essa “invasão” da ciência em todos os campos pode dar contribuições muito importantes, mas nem sempre tão importantes quanto eles pensam e, atenção, a tendência é bem menos recente do que eles imaginam. Pense em Freud! Ao contrário da grande maioria dos psicanalistas que o seguiram nos últimos cem anos, doutor Sigmund era médico, um homem da clínica e do laboratório, e sonhava com tempos em que a tecnologia pudesse nos dar mais informações consistentes sobre o funcionamento cerebral. No entanto, é visto como alguém que só tratou da “mente” e não do órgão cerebral, como se não imaginasse que os pensamentos deixassem registro fisiológico.

E onde Freud foi buscar as diretrizes para suas teorias, além do que observava experimentalmente nos pacientes com distúrbios psicológicos a que atendia? Em dramaturgos como Sófocles e Shakespeare e em pensadores como Schopenhauer e Nietzsche. Ou seja, nas artes e humanidades. Em tais criações ele via “insights” geniais sobre o comportamento humano, sobre as contradições da psique, sobre os impulsos sexuais e os estados melancólicos. Para Freud, que comparou o surgimento da psicanálise ao heliocentrismo de Copérnico e ao evolucionismo de Darwin como transformadores da noção do que é o homem e seu lugar na natureza, os gênios das artes e da filosofia eram indispensáveis para a nova ciência. Na atual onda da terceira cultura, nem todos pensam assim. Por isso não pensam melhor.
(fonte: http://blogs.estadao.com.br/daniel-piza/freud-e-a-terceira-cultura/)

Nenhum comentário:

Postar um comentário